A tecnologia a favor
No início dos anos 2000 o mundo era bem diferente do que conhecemos hoje. O acesso à informação e aos avanços tecnológicos era para poucos. Televisores grandes, canais por assinatura, diploma de nível superior, ar-condicionado, aparelhos celulares e computadores era um sonho inalcançável para a esmagadora maioria da população brasileira. Há vinte anos o mundo era outro e a comunicação também. Apesar de todos os avanços, tanto na tecnologia como nos direitos para os deficientes, uma parte significativa da população ainda enfrenta dificuldades e preconceitos na hora de se relacionar com alguém. Aparelhos auditivos cada vez mais estilosos e modernos, com qualidade sonora excepcional e transmissão direta, bem como implantes cocleares, ofertados inclusive pelo SUS, e a explosão dos aplicativos de encontro, facilitaram, sem dúvidas, o relacionamento surdo-ouvinte. Contudo, ainda há barreiras, dessa vez não físicas, mas emocionais, que precisam ser vencidas.
Os dois lados da moeda
Boa parte dos portadores de deficiências sentem, ou já sentiram, vergonha de suas condições. No caso da surdez, assim como em outros, esse sentimento negativo retarda a reabilitação auditiva em virtude da não aceitação, seja por conta do medo da rejeição ou por uma visão auto distorcida. O constrangimento, que geralmente provém do sentimento de humilhação, ‘’impede’’ o deficiente de usar o aparelho auditivo ou implante coclear, o que piora a comunicação e, sem ela, dificulta seus relacionamentos interpessoais e gera ainda mais vergonha e frustração. Dessa forma, incentivar o uso e tratamento ou ‘’apenas’’ estimular a procura por ajuda, pode facilitar o processo de auto aceitação, além de ser importante também a proposta de lidar de maneira diferente às reações e comentários de terceiros. Pode ser que, em determinadas situações, o preconceito seja apenas imaginário, fruto do pânico de sofrer pré-julgamento.
Não é vergonha
A vergonha de pais, parceiros e filhos em relação à surdez de pessoas de seus convívio é desolador. Como uma criança é capaz de lidar com a vergonha que seus pais sentem da sua deficiência? Como é a autoimagem de uma mulher cujo marido evita participar de encontros entre amigos por conta de sua surdez? É preciso agir com naturalidade, afinal de contas, a deficiência é física e não de caráter. Ninguém escolhe nascer ou desenvolver qualquer tipo doença e insuficiência de um órgão ou função. Essa visão de normalidade se faz imprescindível para o desenvolvimento da aceitação de si mesmo.
A importância da comunicação
Os relacionamentos interpessoais de deficientes auditivos exigem atenção e dedicação, assim como qualquer outro relacionamento, e isso é fato. Sejam amorosos ou não, a construção e a manutenção de qualquer relação demanda virtudes imprescindíveis, como paciência, respeito, reciprocidade, e, acima de tudo, comunicação. Afinal, o problema de quem não ouve, não é ouvir… é a discriminação, a falta de empatia e de respeito com as limitações. Na era da informação, onde a grande maioria passa horas rolando o feed das redes sociais, e num mundo de relacionamentos líquidos, fica difícil para alguém – deficiente ou não – construir relações saudáveis e duradouras. Além disso e definitivamente, é preciso desvincular a comunicação da oralidade. Afinal, comunicar é transmitir uma mensagem e, aqui, não importa a forma e o meio como o objetivo será alcançado.
A interpretação correta daquilo que queremos dizer já é tarefa difícil na oralidade entre ouvintes e, sem sombra de dúvidas, exige empenho. Com a comunicação entre ouvinte-surdo não poderia ser diferente. Em muitos casos, o conhecimento da deficiência se faz empecilho para a continuidade dos relacionamentos. São diversas as situações em que o interesse desaparece (quase que instantaneamente) ao tomar conhecimento da dificuldade do outro, entretanto, o amor tem poder para romper barreiras. O fato de alguém ser francês, por exemplo, e não conseguir se comunicar com um brasileiro, faria ele desistir? Possivelmente o estrangeiro aprenderia o idioma do brasileiro a fim de se comunicar e estabelecer uma relação… por que seria diferente quando o assunto é deficiência? A falta conhecimento é sempre a ignição para o preconceito.
A ignição para o preconceito
A Alegoria da caverna de Platão nos conta a história de prisioneiros que viviam em uma caverna desde seus nascimentos. Acorrentados e com as mãos atadas, esses cativos só enxergavam sombras projetadas, por uma fogueira, na parede ao fundo. Homens e objetos passavam à frente das chamas, formando sombras distorcidas no fundo da caverna, o que aterroriza os prisioneiros. Todo o conhecimento que eles tinham sobre a vida estava ali… as sombras eram a totalidade do mundo. Contudo, repentinamente, um desses homens fora liberto. Andando pela caverna rumo à luz que vinha de fora, ele percebeu que as sombras eram apenas projeções, e ao encontrar a saída se assustou quando se deparou com um mundo exterior. Ao se acostumar com a luz solar que ofuscou seus olhos, ele começa a perceber a infinidade de um mundo que existe fora do cárcere. Nessa teoria platônica sobre o conhecimento da verdade, Platão propõe que tememos aquilo que desconhecemos. Embora a metáfora tenha sido escrita no século IV a.C, fica evidente que a teoria passou de conhecimento especulativo ao refletirmos sobre o século XXI. Afinal, apesar do acesso à informação e da possibilidade de aprendermos coisas novas, insistimos em nos manter dentro do cativeiro quando formamos pré-conceitos dentro de nós. Por isso, é de suma importância que o conhecimento seja adquirido.
Sócrates se recusou a viver sem poder ter a liberdade de pensar e conhecer:
‘’Uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida.’’
Que nos recusemos também a viver sem conhecimento, pois há um mundo inteiro nos esperando fora da caverna.