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A deficiência auditiva e os relacionamentos interpessoais

Publicado por Fonaudio em 24 de outubro de 2020

A tecnologia a favor

No início dos anos 2000 o mundo era bem diferente do que conhecemos hoje. O acesso à informação e aos avanços tecnológicos era para poucos. Televisores grandes, canais por assinatura, diploma de nível superior, ar-condicionado, aparelhos celulares e computadores era um sonho inalcançável para a esmagadora maioria da população brasileira. Há vinte anos o mundo era outro e a comunicação também. Apesar de todos os avanços, tanto na tecnologia como nos direitos para os deficientes, uma parte significativa da população ainda enfrenta dificuldades e preconceitos na hora de se relacionar com alguém. Aparelhos auditivos cada vez mais estilosos e modernos, com qualidade sonora excepcional e transmissão direta, bem como implantes cocleares, ofertados inclusive pelo SUS, e a explosão dos aplicativos de encontro, facilitaram, sem dúvidas, o relacionamento surdo-ouvinte. Contudo, ainda há barreiras, dessa vez não físicas, mas emocionais, que precisam ser vencidas.

Os aparelhos auditivos estão cada vez mais modernos. (Reprodução/Freepik)

Os dois lados da moeda

Boa parte dos portadores de deficiências sentem, ou já sentiram, vergonha de suas condições. No caso da surdez, assim como em outros, esse sentimento negativo retarda a reabilitação auditiva em virtude da não aceitação, seja por conta do medo da rejeição ou por uma visão auto distorcida. O constrangimento, que geralmente provém do sentimento de humilhação, ‘’impede’’ o deficiente de usar o aparelho auditivo ou implante coclear, o que piora a comunicação e, sem ela, dificulta seus relacionamentos interpessoais e gera ainda mais vergonha e frustração. Dessa forma, incentivar o uso e tratamento ou ‘’apenas’’ estimular a procura por ajuda, pode facilitar o processo de auto aceitação, além de ser importante também a proposta de lidar de maneira diferente às reações e comentários de terceiros. Pode ser que, em determinadas situações, o preconceito seja apenas imaginário, fruto do pânico de sofrer pré-julgamento.

Não é vergonha

A vergonha de pais, parceiros e filhos em relação à surdez de pessoas de seus convívio é desolador. Como uma criança é capaz de lidar com a vergonha que seus pais sentem da sua deficiência? Como é a autoimagem de uma mulher cujo marido evita participar de encontros entre amigos por conta de sua surdez? É preciso agir com naturalidade, afinal de contas, a deficiência é física e não de caráter. Ninguém escolhe nascer ou desenvolver qualquer tipo doença e insuficiência de um órgão ou função. Essa visão de normalidade se faz imprescindível para o desenvolvimento da aceitação de si mesmo.

A importância da comunicação

(Reprodução/Freepik)

Os relacionamentos interpessoais de deficientes auditivos exigem atenção e dedicação, assim como qualquer outro relacionamento, e isso é fato. Sejam amorosos ou não, a construção e a manutenção de qualquer relação demanda virtudes imprescindíveis, como paciência, respeito, reciprocidade, e, acima de tudo, comunicação. Afinal, o problema de quem não ouve, não é ouvir… é a discriminação, a falta de empatia e de respeito com as limitações. Na era da informação, onde a grande maioria passa horas rolando o feed das redes sociais, e num mundo de relacionamentos líquidos, fica difícil para alguém – deficiente ou não – construir relações saudáveis e duradouras. Além disso e definitivamente, é preciso desvincular a comunicação da oralidade. Afinal, comunicar é transmitir uma mensagem e, aqui, não importa a forma e o meio como o objetivo será alcançado.

A interpretação correta daquilo que queremos dizer já é tarefa difícil na oralidade entre ouvintes e, sem sombra de dúvidas, exige empenho. Com a comunicação entre ouvinte-surdo não poderia ser diferente. Em muitos casos, o conhecimento da deficiência se faz empecilho para a continuidade dos relacionamentos. São diversas as situações em que o interesse desaparece (quase que instantaneamente) ao tomar conhecimento da dificuldade do outro, entretanto, o amor tem poder para romper barreiras. O fato de alguém ser francês, por exemplo, e não conseguir se comunicar com um brasileiro, faria ele desistir? Possivelmente o estrangeiro aprenderia o idioma do brasileiro a fim de se comunicar e estabelecer uma relação… por que seria diferente quando o assunto é deficiência? A falta conhecimento é sempre a ignição para o preconceito.

A ignição para o preconceito

A Alegoria da caverna de Platão nos conta a história de prisioneiros que viviam em uma caverna desde seus nascimentos. Acorrentados e com as mãos atadas, esses cativos só enxergavam sombras projetadas, por uma fogueira, na parede ao fundo. Homens e objetos passavam à frente das chamas, formando sombras distorcidas no fundo da caverna, o que aterroriza os prisioneiros. Todo o conhecimento que eles tinham sobre a vida estava ali… as sombras eram a totalidade do mundo. Contudo, repentinamente, um desses homens fora liberto. Andando pela caverna rumo à luz que vinha de fora, ele percebeu que as sombras eram apenas projeções, e ao encontrar a saída se assustou quando se deparou com um mundo exterior. Ao se acostumar com a luz solar que ofuscou seus olhos, ele começa a perceber a infinidade de um mundo que existe fora do cárcere. Nessa teoria platônica sobre o conhecimento da verdade, Platão propõe que tememos aquilo que desconhecemos. Embora a metáfora tenha sido escrita no século IV a.C, fica evidente que a teoria passou de conhecimento especulativo ao refletirmos sobre o século XXI. Afinal, apesar do acesso à informação e da possibilidade de aprendermos coisas novas, insistimos em nos manter dentro do cativeiro quando formamos pré-conceitos dentro de nós. Por isso, é de suma importância que o conhecimento seja adquirido.

Sócrates se recusou a viver sem poder ter a liberdade de pensar e conhecer:

‘’Uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida.’’

Que nos recusemos também a viver sem conhecimento, pois há um mundo inteiro nos esperando fora da caverna.

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